Entrevista

“O ambiente de trabalho foi construído historicamente para excluir as mulheres, e nós ocupamos todos os dias esses espaços enfrentando esta interdição”

  • A advogada, especializada em gênero, professora nos departamentos de Politics e Global Studies da New School e fundadora da Veredas Estratégias em Direitos Humanos, Mayra Cotta, estará em Vitória, a convite da OAB-ES e Comissão da Mulher Advogada, para uma palestra


Nesta quarta-feira (01/06), a advogada, especializada em gênero, professora nos departamentos de Politics e Global Studies da New School e fundadora da Veredas Estratégias em Direitos Humanos, Mayra Cotta, estará em Vitória, a convite  da Ordem dos Advogados do Brasil, Seccional Espírito Santo (OAB-ES), por meio da Comissão da Mulher Advogada e sua presidente Genaina Ferreira de Vasconcellos, para dar uma palestra durante o lançamento regional da campanha “Advocacia Sem Assédio” (#advocaciasemassedio), uma iniciativa da OAB Nacional. O evento começará a partir das 18h30, na Base27.

Em entrevista à Ordem, ela falou sobre o assédio sexual e moral: Por que eles ainda acontecem, em pleno século XXI? O que leva as pessoas a infringirem a lei, já que o assédio sexual é tipificado como crime? Por que as mulheres ainda têm dificuldade de denunciar? Como acontece o assédio?

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- Segundo dados apurados junto ao TST, os registros de assédio sexual voltaram a subir após o arrefecimento da pandemia e a retomada gradual do trabalho presencial. Em 2019, 2.805 processos foram abertos nas Varas do Trabalho de todo o país. Em 2020, os registros apresentaram uma leve queda para 2.455 processos. Mas os números de 2021 apontam uma tendência de aumento, já que foram 3.049 novas ações, uma média de 254 vítimas que buscam a Justiça por mês. Na sua opinião, por que, levando-se em consideração que já estamos no século XXI, este tipo de atitude ainda é passível de ocorrer?

Mayra Cotta - O assédio sexual segue persistente em nossa sociedade por diversos motivos. Primeiro, porque estamos todos inseridos em uma cultura que naturaliza e invisibiliza as violências e microagressões cotidianas cometidas contras as mulheres. Segundo, porque o ambiente de trabalho foi construído historicamente para excluir as mulheres, e nós ocupamos todos os dias esses espaços enfrentando esta interdição. O papel social da mulher ainda está muito imbricado com as responsabilidades da casa e a nossa presença no mundo do trabalho formal ainda causa muita resistência por parte daqueles que estiveram sempre tranquilamente ocupando este espaço formal de poder. E terceiro, porque as empresas e instituições ainda estão falhando muito nas ações de prevenção e nas medidas adequadas de responsabilização deste tipo de conduta. Enquanto não houver efetiva responsabilização dos assediadores e das empresas, enquanto não houver devida reparação às vítimas dessas condutas, enquanto não for efetivado um comprometimento sério institucional pela construção de ambientes de trabalho seguros e dignos, seguiremos com avanços tímidos.

- O assédio sexual é crime e está descrito no Código Penal. Embora seja crime, o que leva as pessoas a infringirem a lei e se acharem no direito de constranger alguém dentro do ambiente de trabalho? A lei vem sendo cumprida, ou continua apenas na “estante”?

Mayra Cotta - O tipo penal do assédio não traz a melhor redação para a compreensão deste problema. Por isso, ainda enfrentamos dificuldades na responsabilização penal dos assediadores. Os homens seguem infringindo a lei porque acham que seguirão ilesos com este tipo de comportamento, porque tem o poder de assediar e exercem esse poder como forma de manutenção de seus privilégios. Mas é importante ressaltar que os homens não assediam porque um dia acordam e decidem assediar. Essas condutas acontecem porque estão inseridas em uma sociedade que ainda é muito tolerante com este tipo de violência.

- Por que as pessoas que sofrem o assédio sexual têm dificuldades de denunciar quem está assediando? Quais são, dentro do ambiente de trabalho, os assédios sexuais mais “comuns” de acontecer? Isso é uma questão cultural?

Mayra Cotta - As dificuldades em denunciar vem de alguns fatores. Os mais apontados pelas mulheres são o medo de retaliação e o medo de não serem acreditadas. Enfrentar um superior hierárquico é uma tarefa difícil e nem sempre temos o respaldo institucional para tanto. O assédio sexual muitas vezes é um processo cíclico, com uma combinação de condutas típicas: comentários inapropriados, piadas de mal gosto, convites para encontros fora do horário de trabalho, e até investidas mais explícitas ou violentas. Mas toda violência de gênero, normalmente é cíclica, ou seja, períodos mais tranquilos são combinados com episódios mais agressivos, sempre no sentido de ir forçando os limites do que é aceitável ou apropriado.

- Dizem os especialistas que eles são mais difíceis de provar? Por quê?

Mayra Cotta - São difíceis de provar porque são condutas ou muito naturalizadas naquele ambiente - no caso de comportamentos menos violentos - ou são condutas praticadas sem testemunhas - no caso de comportamentos mais violentos. Não só isso, como também temos dificuldade de interpretar como graves algumas condutas que deveriam ser inaceitáveis. Muitas vezes, temos prova, temos vídeo do que aconteceu, e ainda assim enfrentamos resistência das instituições em reconhecer a gravidade dos fatos.

- Os casos de assédio moral também apresentaram alta. Em 2020, foram 50.391. Já em 2021, foram 52.936 novas ações. No entanto, o aumento não é o suficiente para atingir os patamares anteriores à pandemia. Em 2019, foram registrados 56.169 casos de assédio moral. O que diferencia o sexual, do moral? O assédio moral também configura crime?

Mayra Cotta - Assédio moral ainda não foi tipificado como crime, apesar de algumas condutas que podem estar inseridas em um contexto de assédio moral serem tipificadas - como é o caso da ameaça, da difamação e da violência psicológica. Na prática, às vezes é até dificil separar um assédio moral de um assédio sexual. É comum o superior hierárquico começar assediando sexualmente, fazendo uma investida, por exemplo, e depois da recusa começar a assediar moralmente, como forma de retaliação. O assédio moral, diferentemnte do assédio sexual, não exige relação hierárquica, e pode ser horizontal (entre pessoas da mesma hierarquia funcional). E o assédio sexual exige que o constrangimento seja exercido com o fim de obter vantagem sexual.

- A Convenção 190 veio para padronizar o conceito de assédio?

Mayra Cotta - A convenção 190 da OIT representa importante avanço. Pela primeira vez, temos a inclusão da violência de gênero como uma questão relevante das relações de trabalho, o reconhecimento das violências de gênero como uma realidade perniciosa dos ambientes de trabalho. Ela traz medidas voltadas à eliminação do assédio e da violência no ambiente de trabalho e define a violência e o assédio como “um conjunto de comportamentos e práticas inaceitáveis” que “ tem por objetivo provocar, provocam ou são suscetíveis de provocar danos físicos, psicológicos, sexuais ou econômicos”. Esta definição abrange, entre outros, o abuso físico, o abuso verbal, o bullying e o mobbing, o assédio sexual, as ameaças e a perseguição.

- Na sua opinião, as campanhas de conscientização contra o assédio sexual e moral são o melhor caminho para evitar que as pessoas fiquem sujeitas a isso e conheçam os seus direitos?

Mayra Cotta - Acredito que as campanhas são fundamentais e um passo importantíssimo. Evidentemente, por si só, trazem avanços tímidos. Mas combinadas com a construção de mecanismos institucionais efetivos de responsabilização dos assediadores e das empresas e de reparação às vítimas são uma potência

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