Géssica Rabbi

A Retroatividade da Lei 14.071/20 nos casos de suspensão do direito de dirigir por pontuação

Quando pensamos em “retroatividade”, logo lembramos do que diz a Constituição Federal no seu artigo 5º, inciso XL: “a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu”. Juridicamente, o termo retroagir significa “ter efeito sobre (o passado); fazer valer (para o passado) os efeitos de uma lei, de um julgamento, etc.”.

Desta feita, “fazer valer os efeitos de uma lei” em um processo, ainda em andamento, nada mais seria do que adequar os fatos à lei que beneficiará o autor do fato (leia-se autor do fato como infrator).

Com a publicação da Lei 14.071/2020 que alterou inúmeros artigos da Lei 9503/97 (o nosso Código de Trânsito Brasileiro), surgiram dúvidas sobre como fazer a aplicação de alguns artigos que prejudicariam os condutores e proprietários que cometeram infrações antes da vigência dessas alterações.

Dentre as importantes alterações feitas pela Lei 14.071/2020² no Código de Trânsito Brasileiro, está a mudança da contagem de pontos para a aplicação da penalidade de suspensão do direito de dirigir por essa modalidade.

O texto anterior, no artigo 261 do CTB, trazia apenas a possibilidade de o infrator atingir 20 pontos no período de 12 meses, independentemente da gravidade. A nova redação traz mais duas possibilidades de acúmulo de pontuação, e distingue suas gravidades:

“Art. 261. A penalidade de suspensão do direito de dirigir será imposta nos seguintes casos:
I - sempre que, conforme a pontuação prevista no art. 259 deste Código, o infrator atingir, no período de 12 (doze) meses, a seguinte contagem de pontos:
a) 20 (vinte) pontos, caso constem 2 (duas) ou mais infrações gravíssimas na pontuação;
b) 30 (trinta) pontos, caso conste 1 (uma) infração gravíssima na pontuação;
c) 40 (quarenta) pontos, caso não conste nenhuma infração gravíssima na pontuação³;
A vigência da nova regra ocorreu em 12 de abril de 2021, e trouxe a dúvida de como seria a aplicação para os casos ainda em abertos ou que ocorreram antes da Lei 14.071/20 que ainda não foram computados:
A) Cabe a retroatividade da nova lei aos casos pretéritos?
B) Qual regra seria utilizada?

A resposta é sim! Como os órgãos autuadores têm um prazo para aplicar a penalidade das infrações praticadas pelos condutores/proprietários de até 5 anos, muitos infratores começaram a receber notificação após a vigência da Lei 14071/2020 e surgiram os questionamentos se a nova regra seria aplicada a estes.

Diante da temática, o Conselho Nacional de Trânsito (CONTRAN) editou a Resolução Nº 844/21, que alterou a Resolução Nº 723/18 sobre o processo de suspensão e cassação, com o intuito de regulamentar essa questão e sanar de uma vez por todas, a dúvida suscitada quando da publicação da alteração da Lei 14071.

Desta feita, fica regulamentado que a nova sistemática de pontuação se aplica TAMBÉM às infrações cometidas antes de 12 de abril. Porém, apenas nos casos de processos ainda não instaurados ou cuja instância administrativa ainda não tenha sido encerrada, ou seja, mesmo em sede de recurso na JARI ou no CETRAN, a nova regra deve retroagir em benefício dos que foram punidos com base na norma anterior.

“Art. 3º A penalidade de suspensão do direito de dirigir será imposta nos seguintes casos:
(Parágrafo acrescentado pela Resolução CONTRAN Nº 844 DE 09/04/2021):
§ 2º Para as infrações cometidas antes de 12 de abril de 2021, aplicam-se os limites de pontos previstos no inciso I, nos casos de processos:
I - ainda não instaurados; ou
II - instaurados, cuja instância administrativa ainda não tenha sido encerrada, nos termos do art. 290 do CTB.
§ 3º A pontuação das infrações cometidas antes de 12 de abril de 2021 continua sendo considerada para o cômputo de que trata o inciso I. (Parágrafo acrescentado pela Resolução CONTRAN Nº 844 DE 09/04/2021).”

Enquadrando-se o infrator em uma das duas situações, e quando evidente que a contagem de pontuação está em desacordo com a nova regra, deve o órgão autuador seguir a ordem do CONTRAN e aplicar a retroatividade.

Ao verificar a possibilidade de retroatividade, deve ser alegado, em sede de defesa ou recurso, uma nulidade com os argumentos aqui expostos e requerer ao órgão que arquive o processo de suspensão do direito de dirigir, sob pena de subverter a hierarquia do Sistema Nacional de Trânsito e violar diversos princípios constitucionais e administrativos, trazendo malefícios imensuráveis para o condutor/proprietário.

Referências:

https://www.google.com/search?q=retroagir+significado&rlz=1C1SQJL_pt-BRBR804BR804&oq=retroagir+&aqs=chrome.2.69i57j0l9.8306j0j7&sourceid=chrome&ie=UTF-8

http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2020/lei/l14071.htm

https://www.ctbdigital.com.br/upload/informacao_adicional/2860.pdf
Resolução 723/2018, artigo 24; lei 9873/99, artigo 1º; resolução 619 artigo 33

https://www.in.gov.br/web/dou/-/resolucao-contran-n-844-de-9-de-abril-de-2021-
313215020

* Gessica Cosa Rabbi é advogada, especialista em Direito de Trânsito – Lei Seca/ Processo Administrativo. Secretária da Comissão de Relações Institucionais da OAB/ES (2020/2021) e membro da Comissão de Trânsito, Transporte e Mobilidade Urbana da OAB/ES (2021).

* Os artigos publicados neste espaço não traduzem necessariamente a posição da OAB-ES, mas sim a opinião de seus autores
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