Nenhum minuto de silêncio



Silêncio, substantivo masculino, que significa estado de quem se cala ou se abstém de falar, privação, voluntária ou não, de falar, de publicar, de escrever, de pronunciar qualquer palavra ou som, de manifestar os próprios pensamentos. É a ausência total ou relativa de sons audíveis; se refere a qualquer ausência de comunicação, ainda que por meios diferentes da fala. Na análise do discurso, são breves ausências de fala que marcam as fronteiras das unidades prosódicas utilizadas pelos falantes.

De acordo com as normas culturais, o silêncio pode ser interpretado como positivo ou negativo. Por exemplo, numa organização cristã, além de diversas Ordens Religiosas Católicas, aos Monges ao fazerem o Rito de Profissão Solene ele deve fazer o voto de silêncio, que é redimir toda sua vida num sagrado silêncio durante trabalho e oração.

A expressão minuto de silêncio é utilizada em período de contemplação, oração, reflexão ou meditação silenciosa, sendo considerado gesto de respeito, em especial no luto com aqueles que morreram recentemente ou como parte de um evento histórico trágico.

A sua origem reside numa manifestação do parlamento português, após receber a notícia da morte do diplomata brasileiro Barão do Rio Branco em 10 de fevereiro de 1912. Naquela ocasião o parlamento português manteve-se silente por 10 minutos. Outra versão também difundida é a de que idéia do minuto de silêncio foi concebida pelo jornalista australiano Edward George Honey em um artigo no jornal londrino The Evening News, onde em 17 de novembro de 1919 o rei George V do Reino Unido proclamou que na 11a hora do 11o dia do 11o mês, todas as atividades deveriam ser interrompidas por 2 minutos em reverência à memória dos mortos na Primeira Guerra Mundial, ficando a data conhecida como Dia do Armistício.

Curioso que o “um minuto de silêncio” se tornou a versão reduzida do tempo que destinamos aos nossos mártires, e acaba por materializar o que e o quanto destinamos a essa questão. Hoje os “minutos de silêncio” não completam sequer 60 segundos.

Mas o silêncio também aparece quando comunidades inteiras precisam respeitar a “Lei do Silêncio”, diante da violência, para que permaneçam vivas. O silêncio assim, deixa de ser tranquilidade, paz e contemplação, passando a representar medo, incerteza e submissão. Assumindo a roupagem de uma cumplicidade perversa, o silêncio acaba por produzir mais medo e vítimas.

O momento em que vivemos, de extrema e flagrante violação de direitos humanos fundamentais, onde as potencias bélicas do Estado, deliberadamente, pretendem silenciar os berros de resistência, não podemos fazer ou propor minutos de silêncios. Enquanto fazemos isso, os burburinhos das casernas planejam quem será o próximo ou a próxima a ser silenciados.

Entrementes, eles sempre esquecem de combinar com os russos. Esquecem que a reação a momentos como o que vivenciamos, a partir do crime em que fora vítima Marielle e Anderson, são incontroláveis, e não existe silêncio. O que se faz é barulho, e muito barulho. Barulho que é caracterizado por diversas forma: choros, gritos, berros, falas, protestos, análises, críticas e enfrentamentos; mas jamais, inercia ou silêncio. E mesmo quando quieto se está, o barulho que reside em nosso interior é ensurdecedor.

Nesses dias dilacerantes que vivemos após a noite do dia 14 de março, vivemos o barulho da reação do mundo diante da morte de duas pessoas, que tiveram suas vidas interrompidas brutalmente, mas, mais do que isso, tentaram interceptar uma marcha que estava em curso. A pronta resposta mostrou o tom e direção dessa história. O sangue dos nossos que tombam, rega a vida e impulsiona a luta. A força que emana de histórias como a de Marielle e Anderson (e aqui fazemos memória à todos os defensores de direitos humanos que tombaram na luta) descarta a medo, e não desfigura a luta. Quem abraça essa causa, é impermeável à vingança e as provocações rasas dos desesperados; mas permeável à ternura do sopro da vida digna, pois somente essa que importa.

A luta, mesmo terna, é firme, contundente e inegociável. Não se tergiversa nos princípios e não faz acordos sobre os cadáveres. O diálogo é em tom alto e sem trégua. Agora não cabe pedidos de silêncio ou calma, pois se neste momento houver o silêncio, correríamos o risco de pactuar com o projeto de morte que sempre está em marcha, em que a eliminação do outro é a ação primeira, e que de certo culminará com a supressão total de garantias e direitos fundamentais, em detrimento a preservação de privilégios elitista e econômicos. Então, não esperem silêncios dos movimentos sociais e das ruas, pois agora é que o barulho se estabelece, como mecanismo de resistência.



Verônica Cunha Bezerra, advogada, militante de direitos humanos, membro do Centro de Apoio aos Direitos Humanos - CADH, especialista em direitos humanos pela Universidade Católica de Brasília - UCB, especialista em segurança pública pela Universidade Federal do Espírito Santo - UFES, mestranda em Direitos e Garantias Fundamentais da Faculdade de Direito de Vitória - FDV e Diretora de Direitos Humanos da OAB/ES



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