COVID-19, vacinas e a Licença Compulsória de Patentes
Existem previsões legais de limites na exploração das patentes.
Estamos atravessando uma Pandemia intensa causada pelo COVID-19 e existe uma corrida pelas soluções desta crise.
Uma vacina segura poderia frear sua disseminação, salvar milhares de vidas e evitar uma crise econômica colossal. Como a vacina ou as vacinas podem ser soluções eficazes, fica a questão do quanto poderia valer estes tipos de patentes.
Sobre este instituto, nas palavras do saudoso Denis Borges Barbosa, “invenção é uma solução técnica para um problema técnico”. A Propriedade Industrial prevê a apropriação de inventos através do mecanismo da Patente, com a justificativa no interesse social e no desenvolvimento tecnológico e econômico do país. Tem que ser dito que o mecanismo de patentes pode ser aplicado em diversas áreas da tecnologia, como é o caso dos respiradores e os mais diversos equipamentos, mas vamos abortar o tema com ênfase em medicamentos e vacinas.
Inicialmente, vamos deixar claro que “marca é marca” e “patente é patente”. Muitos acham que podem patentear uma marca, mas são mecanismos diferentes de apropriação de Capital Intelectual.
No caso de uma vacina, sua invenção pode ser objeto de uma patente. A composição da fórmula ou seu processo de fabricação, caso atenda aos requisitos legais, poderiam ser patenteados.
Como qualquer medicamento, uma vacina também pode ter um nome comercial. Aí sim cabe o registro deste nome como marca, o que também é muito utilizado pela indústria farmacêutica para ter exclusividade do nome do remédio.
Segundo o artigo 42 da Lei 9279/96, a patente concedida confere ao seu titular o direito de impedir terceiro, sem o seu consentimento, de produzir, usar, colocar à venda, vender ou importar com estes propósitos.
Estes direitos são fortemente apoiados pela indústria farmacêutica pois viabilizam a recuperação de seus investimentos, que não são pequenos, feitos na pesquisa e desenvolvimento dos medicamentos. Os direitos se justificam na própria essência da Propriedade Intelectual, onde o Estado, através de Lei, outorga poder temporário de exclusividade de exploração ao criador como forma de retribuição do investimento e do estímulo ao ciclo virtuoso de geração de conhecimento e tecnologia.
Em poucas palavras, o Estado concede um poder de exclusiva em troca da renúncia ao segredo e da descrição completa do conhecimento.
Aos que são contra isto fica a pergunta: Por que alguém, sem garantias de sucesso, gastaria muito tempo e dinheiro desenvolvendo algo para que outros possam copiar fazendo uma engenharia reversa?
Ao fim do prazo de 20 anos do pedido da patente ou um mínimo de 10 anos de sua concessão, automaticamente o conhecimento cai em domínio público podendo ser usado por todos sem o pagamento de royalties.
Os laboratórios do mundo inteiro estão correndo pela busca da solução. No caso de uma vacina para o Corona Vírus com os requisitos de patenteabilidade, quem consegui-la pode pensar que pelo fato dela poder evitar milhões de mortes e dezenas de trilhões em prejuízos financeiros, pode cobrar o que bem entender pela sua exploração.
Porém, não é bem assim que funciona. Os tratados internacionais são permeados pelo entendimento de que deve haver um equilíbrio entre políticas comerciais (OMC – Organização Mundial do Comércio), políticas de saúde (OMS – Organização Mundial de Saúde) e direitos de propriedade intelectual (OMPI – Organização Mundial de Propriedade Intelectual). Deve ser cobrado um valor considerado “justo” pelo medicamento.
Em casos extremos, dependendo da emergência ou interesse público, temos o que no jargão popular é conhecido como “quebra de patente”, mas que nos termos corretos da Lei está prevista como “licença compulsória”, regulada pelos artigos 68 a 74 da Lei da Propriedade Industrial (9279/96).
No caso de uma cobrança abusiva no valor do remédio, por exemplo, como patente é um direito territorial, o governo do país que concedeu a patente aciona este instrumento intervindo sobre o monopólio legal de sua exploração.
É um exemplo de justificativa para a previsão legal destas “quebras de patentes”, que são licenças obrigatórias e foram pensadas pelos legisladores como forma de prevenir abusos do exercício destes direitos conferidos pela patente.
Na legislação brasileira podemos citar alguns casos relevantes como abuso econômico (art. 68 da LPI), e emergência nacional ou interesse público (art. 71 da LPI). Inclusive, não são raras as tratativas entre o Ministério de Saúde e a indústria farmacêutica, por exemplo.
É importante saber, que o termo “quebra da patente” é tido como equivocado pois não significa que o seu titular perdeu o direito, mas sim teve a suspenção temporária do direito de exclusividade. Este mecanismo segue normas nacionais e internacionais.
No âmbito internacional podemos citar acordos como o TRIPS - Trade-Related Aspects of Intellectual Property Rights – (Trips), da OMC – Organização Mundial do Comércio, e o CUP – Tratado da Convenção da União de Paris. Estas cartas legais objetivam harmonizar as legislações mundial sobre Propriedade Intelectual e o Brasil está de acordo.
Primeiro, o governo pretendente deve tentar negociar com o titular da patente. Se não tiver acordo, declarar os motivos da possível licença. Caso o conflito de interesses perdure, deve declarar a licença e oferecer uma remuneração financeira justa ao titular da patente pela exploração de seu invento. São os chamados royalties.
Em casos de máxima urgência, existe previsão para a implementação da licença compulsória independente do atendimento prévio de condições estabelecidas para outras situações, o que está no art. 7º, do Decreto no 3.201/99.
No Brasil, em 2007, o governo publicou a portaria 886/2007 declarando o antirretroviral Efavirenz (que combate o vírus HIV) como de interesse público, e o laboratório dono da patente teve um prazo para se pronunciar. As negociações já aconteciam há um tempo. Com seu fracasso, o presidente brasileiro assinou o decreto 6.108/2007, “quebrando sua patente”, o que possibilitou a importação do medicamento na sua modalidade genérica de um outro laboratório.
Desde 2001, por diversas vezes o governo brasileiro especula sobre a necessidade da “quebra de patente” de alguns medicamentos. Porém, foi a primeira vez que o Brasil, de fato, utilizou o mecanismo da licença compulsória visto que, no caso concreto, apesar de todas as tentativas de negociação, o laboratório americano Merk Sharp & Dohme estava oferecendo o medicamento para os pacientes brasileiros por U$$ 1,59 enquanto para os da Tailândia por U$ 0,65. Com a quebra, o governo brasileiro conseguiu comprar de um laboratório da Índia por U$$ 0,44, em vez dos U$$ 1,11, que foi o melhor preço proposto pelo laboratório americano. Neste caso o governo estipulou um valor de 1,5% sobre o preço de custo de fabricação ou do preço que lhe foi entregue, como royalties para o titular da patente.
Todavia, a patente consiste em um instrumento de desenvolvimento tecnológico e industrial. O Estado concede a exploração exclusiva (que é temporária) em troca da descrição da tecnologia que consta na patente. Com isso a sociedade também se beneficia.
É preciso entender que a licença compulsória constitui um instrumento de exceção. Ele não pode ser usado como uma regra. Nosso governo deve se pautar no cumprimento de contratos. Este tipo de intervenção radical no mercado deve ser evitado ao máximo ou outros tipos de problemas podem surgir, retaliações econômicas, por exemplo.
Em 2009, José Gomes Temporão, então ministro da saúde, afastou a possibilidade da cogitada quebra de patente da vacina contra o vírus influenza (H1N1), optando por acordos de transferência de tecnologia entre laboratórios brasileiros e estrangeiros. Isto permitiu o contato, por exemplo, do Laboratório Biomanguinhos/Fiocruz ao conhecimento da produção de vacinas contra o rotavírus, e do Instituto Butantan à tecnologia para fabricação da vacina contra a gripe sazonal.
Em 2018 tivemos novo impasse sobre a licença compulsória do Spinraza (quase 250 mil reais um frasco), medicamento usado para Atrofia Muscular Espinhal. Ele é um medicamento sem escala, de alto custo e grande complexibilidade na sua produção. Estes motivos são um alerta para que se pense diversas vezes sobre utilizar a “quebra da patente”. Ela pode desestimular a inovação na Indústria farmacêutica e desprover diversas doenças raras de tratamento eficiente.
O próprio recém demitido ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, em pronunciamento publicado em 2019 pela EBC – Empresa Brasileira de Comunicação, disse: “o país jamais deveria quebrar patentes de medicamentos, uma vez que isso prejudica a inventividade e o tempo gasto pela iniciativa privada com pesquisas e pesquisadores”.
Enfim. Tem que ser uma manobra dentro das regras e muito bem fundamentada, inclusive, para ser vista com bons olhos pelos organismos internacionais. No caso do Brasil em 2007, a operação da compra “pós licença” teve a participação da OPAS/OMS e da UNICEF.
Além disto, só a previsão legal da “quebra de patente” já é um fator que eleva o poder de barganha do governo de diversos países com a indústria farmacêutica. Sinalizar a possibilidade de usá-la já é um instrumento de pressão por
melhores preços, mas que deve ser usado com muita cautela. Como consequência, isso reflete na maior possibilidade de acesso aos medicamentos, não só, mas principalmente, da população dos países em desenvolvimento.
E países desenvolvidos com encomia sólida também fazem uso do artifício de acordo com a situação. Os Estados Unidos, por exemplo, já utilizaram para finalidades militares, motivos de segurança nacional e, também, para evitar monopólio econômico.
Sobre o sistema de patentes e o Brasil, os investimentos em P & D em nosso país poderiam ser mais massivos. Assim perderíamos menos profissionais qualificados que acabam indo desenvolver ciência em outros países por melhores condições de trabalho.
Também existe uma crítica muito grande sobre a demora na análise das patentes aqui no Brasil e o INPI – Instituto Nacional da Propriedade Industrial - tem adotado algumas estratégias para acelerar estes processos. Em se tratando do COVID-19, o INPI está com um programa de exame prioritário de pedidos de patente de invenções relacionadas ao vírus, conforme Portaria 149, publicada em 07/04/2020.
Apesar de todas as dificuldades, ainda contamos com bons pesquisadores em nosso país. Em maio de 2018 o Instituto Butantan conseguiu a patente de um processo de produção de vacina contra a dengue no USPTO, o escritório de marcas e patentes nos Estados Unidos. Como um contra senso, é mais um dos exemplos onde o Brasil ganha visibilidade desenvolvendo e exportando tecnologia. Ilustrando a robustez dos investimentos na área dos medicamentos, foram investidos mais de R$ 200 milhões no projeto para o desenvolvimento desta vacina. E só para constar, o projeto poderia ter fracassado e o investimento se tornaria prejuízo. Este risco é um dos grandes argumentos das indústrias para a cobrança de altos valores.
Já imaginou como seria bom para o governo brasileiro conseguir a patente da vacina do Covid-19?
Sem contar a projeção mundial do laboratório através de mídia espontânea, o que já valeria bastante, é certo que o valor da patente da vacina do Corona vírus pode ser astronômico.
Se no mercado dos medicamentos cifras bilionárias não são incomuns, em um caso destes, com o tamanho da demanda e escala de produção os valores negociados realmente podem ser bem expressivos. Mas como dito, o valor do produto em si deve ser ponderado como qualquer outro medicamento e não pelo fato da emergência pandêmica. Caso contrário, existem recursos legais para que ninguém pratique abusos.
Juliano Regattieri Oliveira é advogado, presidente da Comissão de Propriedade Intelectual da OAB-ES; membro da Comissão de Startup, Proteção de Dados e Inovação da OAB-ES, conselheiro do Conect – Conselho de Economia Criativa da Findes.